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Memória - Um amor em Santarém

Lúcio Flávio Pinto - 19/09/2021

Orla de Santarém, em 1947 - Créditos: ICBS

 

Elias Ribeiro Pinto e Iraci Cunha de Faria se casaram, em Santarém, no dia 25 de outubro de 1947. Ele tinha 22 anos e ela, 19. O casamento não foi recebido com entusiasmo pela família dela. Havia a expectativa de que a caçula seguisse o exemplo das duas irmãs mais velhas, Aida e Mary, que se casaram com pessoas de famílias de tradição, estabelecidas no bairro central da cidade: Dácio de Oliveira Campos (do clã de um dos dois barões locais da época do império) e Aurélio Imbiriba da Rocha.


O pai de Iraci era um imigrante português. José veio para a Amazônia com o irmão. Enquanto Manuel ficava em Santarém, José prosseguiu até Boca do Acre, cidade amazonense no limite com o vizinho Estado. Leva o nome de batismo por se localizar exatamente na nascente do rio Acre. José casou com Antonia Cunha, filha de um dos maiores seringalistas da região, para o qual trabalhou como guarda-livros (contador), até voltar para Santarém.


Teria sido um “golpe do baú”? Certamente, não. José era incompetente para ganhar dinheiro, inaptidão que transmitiu para quase todos os netos. As economias que trouxe, ele as entregou ao irmão, este, sim, um competente capitalista.


Manoel se tornou um dos homens mais ricos de Santarém, ou o mais rico em certo momento. Comerciava com produtos do interior e os revendia ali mesmo ou até bem longe. Sua casa era uma mansão, que pertenceu a uma das mais distintas famílias santarenas, a dos Braga (do coronel, consolidador da linhagem, e pai dos deputados Sylvio Braga e Cléo Bernardo). O casarão foi posto abaixo, como muito (ou quase tudo) de valor histórico em Santarém.


Se fosse aventureiro ou oportunista, José teria ficado em Boca do Acre. Preferiu o primeiro dos seus vários recomeços. Iraci foi a filha mais nova do quarteto (um homem e três mulheres), mas ela conviveu pouco com a mãe, que morreu quando ainda não completara o primeiro ano de vida. José espalhou os filhos, como era praxe do pai viúvo. Iraci foi parar no Lago Grande de Franca, aos cuidados da família Diniz.


Esse foi o período mais feliz da sua vida. Ela vivia solta, lidando com bichos, tomando banho de rio, andando pela mata – uma caboquinha linda. Aprendeu a comer todo tipo de peixe, mesmo os espinhosos, em sentido literal. A carne era deglutida enquanto as espinhas saíam por um lado da boca. Uma maestria, igual à de jogar farinha na direção da boca sem perder um bago. E a façanha de comer dúzia de ovos crus de tartaruga (quantidade que iria se expandir até surgir a consciência ecológica), sem qualquer alteração no colesterol. Iniciou-se na gastronomia, de que Santarém fez fama. Virou uma grande quituteira. Do seu currículo de bolos constava um bolo “cabe& ccedil;a de negro” sem rival.


Atingida a idade do estudo, voltou a Santarém. Ficou interna no Colégio Santa Clara, que abrigava a elite pagadora e guardava também espaço para as caridades, algumas das quais bem apadrinhadas. Foi outro período idílico, mesmo com a severidade na fiscalização das freiras alemãs. Iraci se tornou mais uma normalista da cidade e foi trabalhar na administração do hospital do Sesp (Serviço Especial de Saúde Pública), uma das boas heranças da Segunda Guerra Mundial, dirigido por um médico (doutor Tinoco), que casaria com Neuza, uma irmã por afinidade de Elias.


O namorado, que viria a ser o marido de Iraci, morava do outro lado da cidade. Elias era da discriminada Aldeia (em cuja origem estavam os índios Tapajó), filho de imigrantes cearenses (Raimundo e Brígida), pejorativamente chamados de arigós. O cruzamento não era ainda comum. Mas Elias vinha se destacando.


Adolescente, foi fotógrafo, professor de inglês e autor de uma façanha em Santarém: o primeiro locutor esportivo a transmitir – para a Rádio Clube – o clássico do futebol local, entre São Francisco e São Raimundo. Presidiu a Congregação Mariana, numa época em que os padres alemães ainda eram os responsáveis pela administração da Igreja local. E começava a dar os primeiros passos na carreira que adotaria pelo resto da vida: a política.
Não foi um casamento feliz desde o primeiro dia, mas Iraci o encarava como a sua vocação, depois de largar o emprego por imposição da regra matrimonial então em vigor: organizar sua casa e cuidar dos seus filhos – sete, ao final, fora dois que não vingaram. Foi o esteio para a caminhada do marido e dos filhos.


No ano seguinte ao do casamento, aos 23 anos, Elias se tornou o redator-secretário do semanário O Jornal de Santarém, fundado em 1943, a publicação de mais extensa duração na história da imprensa santarena (e talvez de todo interior do Pará). Quatro anos depois, em 1952, lançou seu próprio jornal. O Baixo Amazonas, “semanário noticioso e independente”, com quatro páginas em formato europeu, um pouco maior do que o tabloide e um pouco menor do que o convencional. Passado mais de meio século, o jornal ainda tem um ar moderno. Era bem feito para os padrões da época e considerando os recursos (e as limitações) da im prensa fora das capitais.
 

A Gráfica Baixo Amazonas Ltda., que editava o jornal, passou também a vender livros, pelo preço da capa. Em outubro de 1953 oferecia, dentre outros títulos, O Sol é Minha Ruína, O Lago do Amor, Abismo, Eles Esperam Hitler, A Rua das Vaidades, As Ligações Perigosas, O Grande Pescador, Os Deuses Riem, Eu Soube Amar, Uma Aventura nos Trópicos, Tudo Isto e o Céu Também, A Exilada, A Vida de Jesus, Mulher Imortal, Fugitiva, Cidadela. Livros que eram muito lidos numa época de poucos, mas fieis e intensos leitores.


Aí nasceram duas vertentes da família. O jornalismo foi a profissão de quatro dos filhos e ainda é a de três, depois da morte de Raimundo, em 2008. Uma relação íntima com os livros foi outra, por estímulo tanto do pai quanto da mãe, uma leitora discreta, mas constante. Sua presença foi profunda nas vidas dos seus filhos, como eles só agora estão avaliando em sua plenitude.


Por cruel ironia, as lições decisivas dessa história foram dadas por Iraci ao longo dos seis últimos anos de sofrimento causado pelo mal de Alzheimer, doença cruel que um enfarte (seguido por duas pontes de safena e uma mamária) parece ter precipitado. Ela guardou, sublimou e refinou tanta coisa dentro de si que provocou essa explosão do coração e da mente. O avanço da demência, porém, nunca apagou duas chamas dentro dela, que a mantiveram viva e resistente à escuridão: o bom humor e a música.


O bom humor foi outra contribuição para os filhos e todos que circularam em torno dela. Como no Pão de Santo Antônio, a última das muitas moradas que teve desde que chegou a Belém, em 1955, para acompanhar o marido, que se elegera deputado estadual no ano anterior, o sexto mais votado em todo Estado, sob a legenda do PTB de Getúlio Vargas. Acompanhou Elias sempre, como a fiadora da família, a retaguarda de todos os momentos e para todas as necessidades, o quanto pode, até mesmo quando lhe podia virar as costas, o que não fez.


Deu-lhe apoio quando ele foi afastado da prefeitura de Santarém, foi perseguido, reprimido e finalmente cassado. Expurgado da vida política, que era a razão da sua vida, amargou anos de sofrimento, privação e pobreza, só eventualmente com momentos de bonança. A família peregrinou por Belém, se fixando em endereços cada vez mais limitados. Mas Iraci seguiu sendo a luz a brilhar e a bandeira a tremular nos momentos decisivos para todos, desprendida de si.


Cantou e brincou até momentos antes de se engasgar e, em intervalo curtíssimo, sofrer parada respiratória e cardíaca, que a tirou da convivência dos filhos que tanto amou: Eliaci, Lúcio, Raimundo, Luiz, Elias, Pedro e Paulo.


Registro aqui, o mais objetivamente que posso, algumas dos milhares de pegadas que minha mãe deixou nesta terra, rastros que percorrem o interior de cada uma das pessoas que lhe foram íntimas.


Iraci de Faria Pinto, é claro, não morreu: se encantou, como dizia o Rosa. Paira, com seu suave perfume, sobre as margens do Lago Grande, catando estrelinhas caídas do céu.

 

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